Vida é o trem que passa
Os sonhos são vagões
O amor é o maquinista
Somos nós, a estação! (Lillyan Lopes)
É chegado o tempo do recolhimento, ainda mais com o frio à porta. Lembrei do trem – a Maria Fumaça, sua locomotiva; as fagulhas espalhadas pela chaminé, adentrando nos vagões, por janelas abertas. Elas queimavam as vestes em pequenos pontos, depois cerzidos. O trem passou pelas nossas vidas; sonhos que se foram e muitas estações passaram; em cada uma delas, vidas se acotovelando com a passagem na mão.
O recordar nos leva a uma viagem através do tempo, quando as famílias muito viajavam de trem. Era o tempo do trem Caxias; normalmente chegava em Montenegro com atraso. O pessoal caminhava até a Estação Férrea; alguns pela pela Osvaldo Aranha outros pela Santos Dumont. Por esta última, do Wolgemuth até a Estação, o trajeto era pelos trilhos. Pouquíssimos iam de carro de praça.
As pessoas trajavam a sua roupa domingueira, impecavelmente. Os homens com fatiota, camisa branca e gravata. As fatiotas eram mandadas confeccionar nos diversos alfaiates locais. As camisas eram compradas no comércio, ou feitas pela Camisaria Jung. Os vestidos confeccionados por modistas e costureiras.
O importante era estar bem apresentado, para impressionar os parentes do interior, aos quais íamos em visita. Pelo normal atraso do trem Caxias, a primeira pergunta que se fazia ao chegar à Estação era: “Quanto tempo o Caxias tá atrasado?”.
Primeira providência, comprar os bilhetes, na primeira ou na segunda classe, conforme o poder aquisitivo. O bilhete era um pequeno ticket, feito em papelão; Ao passar para a plataforma os bilhetes eram apresentados e furados por um funcionário. Evidente que a gurizada sempre dava um jeito de alcançar a plataforma bem antes, mesmo sem bilhete.
A plataforma era um lugar para brincadeiras. Na Estação vendiam revistas e os filhos pediam aos pais para comprarem, principalmente o Pato Donald ou Mickey. Alguns sentavam na escadaria da entrada, mas com todo o cuidado, para não atrapalhar e nem sujar a roupa. Se isso acontecesse, o castigo era certo.
Na plataforma circulavam vendedores de pastéis e sonhos; havia vendedor de balas e doces, que anunciava os seus produtos, gritando: ‘BALEIRO, BALAS”. No verão vendiam picolés, que eram feitos em casa. Havia uma técnica para saber se o trem vinha chegando: colocar o ouvido no trilho e ouvir o barulho, que se propagava por longe. O pessoal da Estação ficava brabo, xingava, mandava voltar para a plataforma. Os pais eram chamados, até a coisa normalizar.
Na plataforma as meninas iam para um lado e os meninos para outro. Elas brincavam de sapata (amarelinha), de esconder e de pegar. Claro que haviam outras brincadeiras, como “Brincar na floresta enquanto o seu Lobo não vem”, “Meia-lua, um, dois, três, “Calçada é minha, não é do dono”, com ferrolho na parede. Nos dias de chuva, as brincadeiras aconteciam debaixo da marquise.
Os guris, além de escutar a aproximação do trem, brincavam de mocinho e bandido, de índio, Super-Homem, de pegar, de esconder. Muitas vezes uma bola era improvisada – com papel – e saia um jogo de gol-a-gol ou de atirar com a mão.
Seguidamente ouvia-se uma advertência da mãe: “vai te sujar – levanta daí” e assim por diante; em dias de calor, o desalinho era completo após tais brincadeiras. Finalmente ouvia-se o apito do trem se aproximando; era uma correria; posicionar-se para o embarque, arrumar as roupas e esperar. A pressa era para pegar um bom lugar, junto à janela.
Depois, ao apito do Chefe da Estação, o trem seguia e nós juntos, levando as interrogações da vida, as esperanças e os sonhos ao encontro da próxima Estação. Num trem, vidas a correr pelos trilhos … Muitos ainda continuam, mas já não correm; quando muito, andam.