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Os mundos de Virgínia

  • Agosto 29, 2023
  • Conexão | Brasil x Portugal
  • Fátima Fonseca

Adivinhava-se mais um dia muito quente!

Manhã cedo, já só na estrada ali junto ao mar corria uma brisa fresca.
A caminho do Centro de Saúde, Virgínia via à sua frente uma longa e lenta fila de carros na ponte para entrar na cidade  e só pensava que iria ter além da lista de doentes previstos, vários outros a pedirem consulta sem marcação, pois aquele calor asfixiante fazia mal a toda a gente!
Só lhe apetecia inverter a marcha e voltar para a praia, onde deixara o marido e os três filhos, ainda de férias, entrar de mergulho no mar e aproveitar a brisa fresca…

Atrasada e afogueada, atravessou a sala de espera, cumprimentando, apressadamente, os doentes que a esperavam, falou com uma enfermeira e em seguida, entrou no seu gabinete. Enquanto vestia a bata, prendia os cabelos em rabo-de-cavalo e olhava a lista de doentes que teria de atender nesse dia, só pensava que não era  nada fácil gerir família e profissão … a semana ainda estava a começar e sábado e domingo mal tinham chegado para resolver os problemas lá de casa…
(muita coisa a preocupava: …o filho mais velho, prestes a fazer 18 anos, a querer organizar uma ‘mega -festa ‘ , mas ao mesmo tempo, cheio de nervos a aguardar  resultados da admissão à Faculdade de Medicina; a filha do meio com 15 anos, tão gira e gabada por todos, mas com a cabeça cheia de futilidades, tão centrada em si própria, nas modas e redes sociais, e por fim o rapazinho mais novo, de sete anos, um amor, mas ainda tão bebé e dependente da mãe… mais o marido, agora como uma criança carente,  de perna estendida em repouso total  a recuperar de uma cirurgia após uma fratura no futebol com amigos!)

Sentada à secretária, enquanto abria o computador, voltou a olhar para a lista, fez uma breve pausa, fechou os olhos por momentos,  (murmurou ‘ Por Ti, Contigo e para Ti! ),e  depois começou a chamar os doentes…
Sentia que a brisa fresca do mar e os problemas da sua casa tinham de ficar lá fora, ‘ arrumados’ no carro, e fechada a porta, ali e agora o  seu mundo era outro…

‘…D. Aurora, então como se sente, mais aliviada? Ai, eu sei, eu sei, são as artroses dos seus joelhos… ora mostre lá…vou passar- lhe uma nova receita e vai ver como vai melhorar, mas não esqueça que tem de dar uma volta ao quarteirão  todos os dias…’
(… não, não consigo esquecer o mundo lá de casa…quando é que aquele meu filho cresce e percebe que não estamos em tempos de ‘mega- festas’? O dinheiro não cai dos céus aos trambolhões! Vai ser um jantar na varanda e no máximo 12 amigos… faço -lhes um bacalhau espiritual que rende e sai sempre bem… e depois, se não entrar em Medicina este ano? Já lhe disse para ter calma, não é o fim do mundo…é muito novo! Só precisa ter juízo!)

‘.. . Sr. João, ora mostre- me lá os exames que eu pedi… estou a achar estranho, não sei porquê, mas já deviam estar no sistema e não estão a aparecer aqui no computador… o quê? não fez? perdeu os papéis? Ó Sr. João, valha- me Deus, mas eu já tinha pedido  com urgência… vamos lá medir a sua tensão, mas o Sr. tem de fazer estes exames. Vou marcá- los já hoje …

(e Virgínia pensou de repente, se o marido se teria lembrado da hora do antibiótico… tinha de telefonar para casa quando o Sr. João saísse… pobre Sr. João, desde que estava viúvo e sem filhos por perto, estava a ficar tão desmemoriado… podia ser início de demência, ou apenas a  depressão, coitado, mas ele não conseguia recuperar da perda da mulher…)

…’ Então que se passa, D. Merceana? É outra vez o filho que a preocupa? Vá lá, não chore! Ora conte lá… não se preocupe, pode falar à vontade, fica só entre nós e temos tempo! Mas vou pedir ao dermatologista para analisar esse seu sinal… não, não é verruga… mas conte lá…
(e Virgínia ouvia a mesma história, com infinita paciência! Já a conhecia há muito… o filho tardio da D. Merceana, aos 14 anos, no liceu, começara a andar com rapazes mais velhos, repetentes, que o arrastaram para a droga e agora aos 24 anos, estava na prisão e a pobre mãe, sozinha, a fazer limpezas domésticas, já sem saúde, estava cada vez mais magra, a desaparecer, devorada pelo desgosto e pela vergonha …
E Virgínia pensava que ela e o marido também não gostavam de alguns amigos do filho mais velho, sempre a desafiá-lo para os copos, o famoso  ‘botellón’ dos sábados no parque de estacionamento da praia…)

Os doentes iam- se sucedendo, mas a lista era grande e o almoço teria de esperar…o que apetecia mesmo era  um mergulho nas ondas do mar… e um sopro daquela brisa fresca…

Virgínia sabia que entretanto, já tinha chegado o Nuno, com esclerose múltipla, 45 anos, pai de três crianças pequenas, com uma história de vida extraordinária, uma força de vontade e uma coragem verdadeiramente notáveis … tinha de o chamar, não queria fazê-lo esperar. Ele ainda trabalhava. Mandou- o entrar e vinha com a sua mulher, uma jovem encantadora. Virgínia conhecia- os bem há alguns anos. Acompanhava de perto a evolução da doença e embora ele fosse tratado por médico da especialidade, vinha ali com alguma frequência pedir receitas… ou apenas desabafar e pedir conselho…(pobre Nuno! Está muito pior e apesar de tudo continua a lutar por manter uma atitude positiva! Até quando? O novo tratamento irá resultar???E a mulher, tão nova e bonita,  a dar- lhe apoio, sempre confiante de que virão dias melhores… são um  espantoso exemplo de família  e de fé para mim! Quem me dera que os meus dois filhos mais velhos os conhecessem, talvez isso lhes fizesse bem e os ajudasse a crescer, a perceberem que a vida é bem diferente do seu mundinho confortável  … e se eu lhes perguntasse  se não precisam de alguns  ‘babysitters’ gratuitos? Acho que os meus filhos podiam ajudá- los com as crianças ! )

As consultas prolongaram-se.  Virgínia acabou por não almoçar, pediu apenas uma sanduíche e um café e continuou a receber doentes. Não tinha fome, não, só mesmo queria um mergulho e um pouco da brisa fresca do mar…

No regresso a casa, ao fim da tarde, depois de ter ainda visitado alguns doentes acamados, Virgínia ainda deu um salto ao supermercado a comprar umas pizzas para o jantar, enquanto pensava na sua gente… a filha, desta vez, teria feito o que lhe pedira? Dera o almoço, que a mãe deixara avançado, aos manos e ao pai? arrumara a casa?… ou teria sido o habitual? Acordar ao meio- dia, pequeno- almoço  e ala, a correr para a praia com o irmãozinho mais novo e as amigas? Era uma miúda doce e querida, cuidadosa com o irmão mais novo,  mas por ser tão gira e ter tantos rapazes atrás dela, Virgínia sentia- se cada vez mais preocupada com ela…e com aquelas modas de que não gostava nada e que já provocavam conflitos lá em casa. Na semana anterior já tinha havido sarilho… a filha  tinha chegado a casa mais tarde que a hora combinada, sozinha, sem a companhia do irmão,  e vinha vestida com roupa das amigas…O pai zangara – se e gritara – lhe: ‘…mas que figura é essa? Filha minha não anda assim vestida! não percebe que uma miúda decente não pode andar com roupas dessas?  A mãe já a viu? ‘
Não, Virgínia não a tinha visto. Estava a dormir, porque tinha consultas no dia seguinte e só o pai esperava a filha na sala. Ainda por cima cheirava imenso a tabaco…

E nessa noite, de tão zangado que estava, o pai, unilateralmente, decidira que não havia mais saídas à noite até ao fim das férias …ele tinha razão, mas Virgínia era mais branda e custava- lhe impor- se, contrariar…entrar em choque!

Ahhh, que difícil lidar com a adolescência! Ahhh, meu Deus, que difícil educar nos dias de hoje!!!  Tantos problemas… e mais os juros da casa a subirem… o marido ainda nem tinha visto a última carta do Banco!!! Virgínia não queria preocupá-lo, logo agora que estava a recuperar da operação!

Às vezes apetecia- lhe fugir… como agora, ou pelo menos, ir só dar uma longa volta pela praia antes de entrar em casa…mergulhar nas ondas, respirar o ar fresco e sentir a brisa do mar…

Por momentos, Virgínia  pensou nos seus doentes e no Sr. Lourenço de 76 anos a acompanhar permanentemente, com tanto carinho e paciência,  a irmã  Mariazinha, com 80 anos e com Alzheimer avançada …e lembrou -se que na verdade, havia problemas bem mais graves que os de sua casa!

Olhou para a praia, respirou fundo, sentiu  a brisa fresca do mar e meteu a chave à porta. De imediato, lhe apareceu o filho mais novo, correndo para ela e saltando- lhe ao pescoço:

‘Mãezinha! Que bom! Estamos cheios de fome!’

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