Ofélia era uma mulher curiosa!
Nela coexistiam duas Ofélias: a mulher de 50 anos, advogada de profissão, mãe de família, responsável, trabalhadora focada em metas diárias, organizada e fiável, e a outra Ofélia, com espírito sempre jovem, desportista, aventureira e apaixonada pela pesca, aquele ‘bichinho’ aprendido do avô desde a infância quando ele a levava à pesca, com um baldinho e um camaroeiro e passavam horas nas rochas…
Casara com um homem dez anos mais velho, muito diferente dela, igualmente jurista, mas pacato, um ‘homem de sequeiro’ como ela, um tanto ironicamente, lhe chamava, muito culto, mais interessado em ler e estudar à secretária do que em ir à praia e, sobretudo, apaixonado pelo seu Alentejo e completamente avesso ao peixe e à pesca…
A relação com o marido nem sempre corria bem e estava em crise de novo…Ofélia estava farta do feitio dele e das suas pequenas manias… ela era uma mulher de decisões rápidas, enquanto que ele sempre hesitava e adiava tudo…por isso, quando naquela manhã fora abrir o portão do jardim e dizer adeus ao marido e aos dois filhos adolescentes que iam aproveitar o feriado para visitar os avós paternos no Alentejo, Ofélia suspirou de alívio… tinha três dias de descanso… paravam as discussões por causa das obras necessárias na casa e por tudo e por nada, ficava sozinha e…claro que teria umas belas pescarias à sua frente!
Foi ver a previsão do tempo e das marés, fez umas sanduíches, encheu uma garrafa de água, vestiu o kispo amarelo e toda contente, pegou na cana de pesca e num balde com isco e pôs- se a caminho a pé…não era longe, uns vinte minutos e estaria na praia…de repente deu conta de que se tinha esquecido do telemóvel em casa…mas não lhe apetecia voltar para trás… também que falta lhe faria? Felizmente, o escritório de advogados estava fechado e ninguém a incomodaria… o marido só telefonaria à noite, de certeza… e sem mais preocupações ali estava ela já na praia vazia, dirigindo- se para a zona rochosa… por momentos lembrou-se que ninguém sabia dela, e se algo lhe acontecesse…? (‘ … ora bolas, que ideia tão estúpida! ‘)
O tempo ia passando, pescara pouca coisa…mas Ofélia estava agora completamente absorta na luta contra um peixe, grande certamente, pelos puxões que sentia na cana, e em certo momento, ao tentar dar à manivela com rapidez e levantar a cana com mais força, desequilibrou- se, escorregou na rocha e caiu, enfiando o pé num buraco… …de imediato sentiu uma dor lancinante, e o pé torcido em estranha posição fez-lhe perceber de imediato que estaria partido… arrastou-se como pôde, num esforço sobre-humano para fugir daquele enorme buraco onde as ondas embatiam furiosamente e aflita, pensou, como seria impossível sair dali sozinha; lembrava- se vagamente de ter visto um outro pescador ao longe, mas em volta não havia vivalma… o relógio partido também não lhe permitia saber há quanto tempo ali estava, mas sabia que a maré estava a encher… e entrou em pânico! Nem o telemóvel trouxera… ninguém sabia dela… e as horas a passarem…
Era outono, os dias estavam cada vez mais curtos e a posição do sol dava-lhe a entender que apenas teria mais umas duas horas para que alguém a visse… com o kispo amarelo enfiado no topo da cana tentava chamar a atenção e ser vista… talvez algum outro pescador por ali passasse, ou um casal de namorados, ou um turista fotógrafo viesse às arribas ver o pôr- do- sol… era a sua derradeira esperança…
Ofélia começou a lembrar- se como em pequenina estava sempre a cair do triciclo e nas escadas da escola… e até desmaiava…era falta de açúcar, porque não comia doces, detestava açúcar… e tantas vezes torcera os pés… depois já crescida, não se aguentava bem nos saltos altos que usava para festas, como todas as amigas, o que lhe valia mais umas entorses…( ‘será que ninguém me vem salvar? Será que vou morrer aqui… e o mar me arrasta para longe da costa?’ )
As lágrimas misturavam-se agora com a espuma das ondas perigosamente mais próximas. Arrastou- se um pouco mais sobre as rochas, escorregando nas algas molhadas e ferindo pernas e joelhos… mas era preciso fugir da maré cada vez mais cheia… e entretanto ia acenando com o lenço colorido que trouxera na cabeça … talvez alguém a visse…mas que frio… que frio… sentia- se tonta e a perder as forças…que queda desastrosa!
(… as quedas… sempre as quedas… e várias outras ‘quedas’ também tinham marcado a sua vida… lentamente, Ofélia que há muito não sabia o que era rezar, começou a pedir a Deus que a salvasse, que lhe perdoasse as ‘quedas’ graves do passado…sim, aquela horrível tentação que a fizera cair na tentativa de aborto, felizmente falhado, lembrava-se bem como um bom médico ginecologista e obstetra a salvara e ao seu bebé … e depois, anos mais tarde, aquela breve aventura louca com um colega de trabalho depois de uma zanga grave com o marido… ‘Meu Deus, perdoa- me! Meu Deus, se existes mesmo, salva- me, por favor, não me abandones…sinto- me tão mal…. Tenho medo….! Tenho frio…’).
Quando recuperou consciência e reabriu os olhos já era escuro e os bombeiros estavam a meter a maca em que a transportavam numa ambulância. Ao lado, um bombeiro cobriu- com uma manta, pegou- lhe na mão … e animou- a, dizendo:
⁃ ‘ Dra Ofélia, está a salvo! Não tenha medo…teve muita sorte… não tinha a sua hora chegada, sabe? ‘
⁃ ‘ …mas como sabe o meu nome? Como me descobriram?’
⁃ ‘Olhe, parece que estava um outro pescador longe de si lá mais à frente e quando ele deixou de a ver, estranhou…foi à sua procura e percebendo o que lhe aconteceu, veio pedir socorro e nós viemos logo, mas não foi fácil … ele conhecia a senhora … de um julgamento em que a Senhora o defendeu há muitos anos… e reconheceu- a… mas olhe, ele viu que a Senhora estava a salvo, disse-nos o seu nome e já se foi embora … mas não nos quis dizer o nome dele…’
De perna estendida na sala de espera do hospital, no dia seguinte, já operada e com a perna em gesso, Ofélia esperava a chegada do marido e dos filhos… dava conta agora de como ‘o homem põe e Deus dispõe ‘…em poucas horas tudo mudara na sua vida! Ansiosa por voltar a casa e abraçar os seus, as discussões com o marido pareciam- lhe agora apenas questiúnculas … só queria mesmo beijá-los aos três e poder talvez agradecer ao desconhecido que a tinha salvo… quem seria ele???