Mikaela chegara a Portugal no final da Segunda Guerra Mundial, integrada num dos primeiros grupos de crianças a quem a Caritas se propusera encontrar uma família de acolhimento, enquanto os pais tentavam reorganizar as suas vidas nos seus países devastados pela guerra. Desejava- se para aquelas pobres crianças tão traumatizadas, um tempo de recuperação física e psicológica e calor humano, nos braços de novas famílias…
Naquela tarde chuvosa, à chegada à estação de Sta Apolónia, quando o casal Silva se apresentou, conforme previsto e acordado, aos responsáveis da Caritas, para levar aquela menina franzina e triste para sua casa, Mikaela não conseguiu esboçar um sorriso sequer, apesar dos esforços e simpatia do casal…
Com uma pequena maleta a tiracolo, deu- lhes a mãozita gelada e partiu com eles, de olhar vazio e inexpressivo.
Durante um mês houve um bloqueio completo. Pouco ou nada comia e por mais que a acarinhassem, a barreira da língua era uma realidade e Micaela permanecia muda, apática e desinteressada de tudo, quase como um autómato. O casal Silva, deveras preocupado, procurou então uma professora de língua alemã para a acompanhar em casa e ao mesmo tempo quiseram aprender algumas frases simples…
Maria era médica e João Silva engenheiro. Não tinham filhos, o que lhes dava muita pena, e a oportunidade de acolherem uma criança traumatizada pela guerra, sensibilizara- os desde início… queriam dar- lhe o seu melhor! Alugaram até uma pequena casa com jardim, nos arredores de Sintra, para aí passarem os fins-de-semana.
Com a professora alemã, Frau Schmidt, a situação começou a melhorar. A pequenita passeava todos os dias com ela e regressava a casa mais contente. Já sorria, comia com apetite, começou a engordar e a ganhar melhores cores.
Maria, entretanto, também pedira à professora que lhe ensinasse algumas pequenas frases… para tentar comunicar melhor com Mikaela.
- ‘Frau Schmidt, como se diz ‘gosto muito de ti’?
- ‘Ich liebe Dich!’
O tempo foi passando e todos os dias a pequena Mikaela aprendia alguma coisa em português e começava a adaptar- se. O casal Silva lembrara- se de lhe oferecer um gatinho bebé e essa relação de cuidado e atenção permitira à pequenita redescobrir emoções e afetos adormecidos pela violência da guerra e separação da família. Entretanto, além da ajuda diária da explicadora alemã, Micaela entrou numa escola portuguesa, fez amizades, voltou a ter lições de piano como tinha no seu país e notavam- se nela grandes progressos… mas o ponto alto era sem dúvida quando à noite, ao deitar, aqueles pais adoptivos a abraçavam longamente e aconchegando- lhe os lençóis e cobertores, sempre lhe repetiam, com doçura extrema, mais que uma vez :’ ich liebe Dich!’
Mikky, como agora lhe chamavam, viveu em Portugal dos seis aos dezasseis anos. Periodicamente dava e recebia notícias de seus pais na Áustria, e Mikaela sabia que em breve iria regressar ao seu país, embora pouco falasse do seu passado. Um dia, os pais vieram conhecer a família de acolhimento, agradecer- lhes tudo o que tinham feito por ela e anunciaram que breve a levariam para prosseguir os estudos em Viena de Áustria e entrar na Universidade.
Embora com o coração dorido, os pais adoptivos sabiam que era o combinado desde início e seria melhor para o futuro de Mikky.
Quando ficou noiva, já no fim do seu curso, Mikky veio a Portugal apresentar à Mutti e Vati (mãezinha e paizinho) – como chamava aos pais adoptivos!- o seu querido Noivo- e convida- los para o casamento no ano seguinte!
O casal Silva mantinha contacto frequente por carta ou telefone com Mikky e esta ia- se apercebendo de como eles estavam a envelhecer rapidamente. Contudo, ainda puderam ir ao casamento de Mikky.
Embora sabendo que ela descendia de famílias aristocratas, nunca tinham imaginado que se tratasse de uma verdadeira princesa e de uma família cheia de pergaminhos…
A festa foi um verdadeiro conto de fadas! No regresso a Portugal, o casal Silva a todos contou como tinham sido tão bem recebidos, tendo ficado instalados num palácio nos arredores de Salzburg … e durante a cerimónia, na igreja e no local do banquete, tinham tido sempre lugares de honra junto dos noivos e da família de ambos e tinham ouvido palavras de grande ternura, apreço e gratidão!
Dois anos mais tarde, Vati partiu para o céu, não sem que antes tivesse tido a alegria de ainda receber a visita surpresa de Mikky, já com um bebé de colo.
E Mikky estava agora de volta… desta vez para se despedir de Maria, acamada havia alguns meses. Quis saber se a Mutti precisava de dinheiro para pagar os cuidados necessários e via- se nela uma preocupação sincera. De mãos dadas e olhos nos olhos, falaram brevemente:
- ‘ Não, minha querida… não preciso de nada… só precisava muito de te ver para te dizer…’
- ‘ … eu sei, Mutti querida… ich liebe Dich!’- interrompeu- a Mikaela.
- ‘…sim, ainda te lembras, Mikky??? Ich liebe Dich…ich liebe Dich, Mikky!’
- ‘Ich liebe Dich, Mutti!’