À chegada a Lisboa para entrar na Faculdade e estudar Direito, Rui era um jovem provinciano, esperto, sociável, trabalhador e ambicioso. Os professores, desde a infância, diziam que aquele rapazito havia de ir longe. Ao despedir- se do avô, que não sabia ler nem escrever, ouvira da sua boca, este conselho: ‘ Estuda, meu rapaz, faz- te um homem, mas nunca te envergonhes das tuas raízes, nem dos teus pais e avós, e lembra- te, se queres ser político e subir na vida, que o mais importante são as pessoas… não é o dinheiro, nem o sucesso’.
Rui rapidamente se ambientara, modificara gostos, maneiras, e forma de vestir, mas sempre com muita cabeça, sabendo que o dinheiro que o pai com sacrifício lhe mandava da terra não dava para muito, e assim, arranjara um ‘part- time’ numa loja, e ainda dava explicações aos filhos do senhorio, que lhe arrendara um quarto. Trabalhava muitíssimo, e logo de início, colegas e professores da Faculdade de Direito começaram a notar como o Rui se destacava pelo empenho e participação nas aulas. Interessava- se por política, estudava, aprofundava, lia muito, mas era um idealista e em debates de ideias, ninguém lhe levava a melhor. Um dia, um professor chamou- o de parte e convidou- o a ir a uma sessão de esclarecimento de um novo partido!
Rui foi, gostou das ideias e valores defendidos e começou a acompanhar de perto as atividades daquele grupo com quem sentia afinidades.
Entretanto, através de bons colegas foi convidado a participar também em ações de voluntariado num bairro perto do aeroporto… entusiasmara- se e condoera- se da situação de algumas pessoas que ali viviam…em piores condições que os velhotes da aldeia dos avós…
Como não tinha outro dia livre, era ao domingo que visitava algumas daquelas pessoas, dedicando- lhes tempo e atenção !
Era o caso da Ermitéria, uma cabo- verdiana de 70 e poucos anos, muda, solteira e a viver sozinha. Muito simpática, apesar da impossibilidade de falar, criara laços de amizade com aquele jovem que podia ser seu neto…
Através dos vizinhos, Rui soubera que Ermitéria sofrera um AVC e perdera a fala quando um dia, ao chegar a casa, encontrara a casa a arder e até o pouco que tinha ficara reduzido a cinzas…Ermitéria não tinha família em Portugal, não sabia ler nem escrever, e vivia de um magro subsídio, pois enquanto fora trabalhadora doméstica ninguém a tinha inscrito na Segurança Social. Agora frequentava, ali perto de casa, uma associação de bem- fazer, onde se sentia acarinhada e apoiada. Rui quis conhecer a associação e quando lá foi, ficou encantado com o que ali se fazia para apoiar muitas famílias desfavorecidas, sobretudo de origens africanas. Em conversa soube que 28 de fevereiro era o dia de anos de Ermitéria e prometeu que sempre lhe iria dar os parabéns, por mais curta que fosse a visita.
Sabia que não podia chegar a toda a gente, como desejaria, e lembrava- se bem do conselho do avô…’ o mais importante são as pessoas…’! Desde então, sabendo das dificuldades de Ermitéria, Rui procurava visitá-la e levar-lhe alguma comida todos os domingos.
Os meses iam passando e Rui estava já bem ambientado na cidade! Tinha amigos, de quando em vez saía à noite com eles, mas a sua prioridade era a Faculdade. Depois do Natal tivera exames e tivera de concentrar-se ao máximo neles, pelo que deixara o’ part- time’, apesar de o dinheiro ser pouco. O pai, por seu turno, também reduzira o apoio à renda, dizendo- lhe:
‘ Meu rapaz, desenrasca-te…a mãe está doente, teve uma nova crise de coração e tive de a levar a uma clínica privada para não ficar à espera de médico no Serviço Nacional…desculpa lá, mas desta vez não posso ajudar- te com mais dinheiro!’
Entretanto aproximavam- se também as eleições e de tão envolvido que estava na campanha eleitoral , Rui já há mais de um mês que não aparecia no Bairro onde vivia Ermitéria, de quem não tinha notícias…
Chegou o dia 28 de Fevereiro! Rui estava comprometido com o partido… havia uma ‘arruada’ e um comício nos arredores, ele era um dos principais porta-bandeiras e acompanhava o grupo, guiando o carro do ‘leader’ do partido.
De repente, lembrou- se do aniversário de Ermitéria… (não podia faltar ao prometido! Pobre mulher… só ele lhe levava um bolo de anos… e de ananás, se possível, que era o seu favorito… que fazer??? E ainda por cima estava quase sem dinheiro na conta… como fazer???).
À sua volta, a algazarra e os gritos de apoio intercalados com alguns apupos enchiam os ares e a multidão na rua rodeava -o e apertava-o; mais atrás, vinham uns rapazes com ruidosos bombos…
Rui começou a atrasar- se… a deixar- se ultrapassar por outros…( ‘o mais importante são as pessoas…’ a Ermitéria faz hoje anos… que hei- de fazer? Como volto para Lisboa? E deixo o ‘leader’ assim sem mais nem menos…? ‘). De repente, Rui viu o presidente da distrital e com o seu desembaraço tão característico foi ter com ele.
– Desculpe, mas tenho de voltar já para Lisboa! Consegue substituir- me por algum outro rapaz da sua confiança para guiar o carro do nosso chefe? E pode emprestar- me 20 euros para eu apanhar o comboio? É muito urgente… dê-me o seu mbway que eu transfiro sem falta depois de amanhã… desculpe! É mesmo uma emergência…
O presidente da distrital olhou- o admirado, já tinha ouvido falar nele, leu- lhe no rosto a sua grande preocupação… abriu a carteira e entregou- lhe 40 euros, sem nada perguntar e sem hesitar.
‘Leva, pode fazer- te mais falta do que a mim!’
Rui agradeceu- lhe com um abraço, deu- lhe as chaves do carro e sem mais demoras pôs- se a caminho… com aquele dinheiro entrou numa pastelaria, comprou um bolo de anos com uma vela só ( quantos anos faria a Ermitéria? Ela nem sabia…73, ou 74? ) em seguida caminhou rapidamente para a estação e mesmo a tempo apanhou o comboio para Lisboa.
Quando chegou, foi ao multibanco e levantou o pouco dinheiro que ainda tinha, pensando com os seus botões que a Ermitéria talvez gostasse mais que ele lhe levasse um lenço garrido para amarrar à cabeça como ela sempre usava… mas dar- lhe- ia esse dinheiro para ela gastar a seu gosto…já não havia tempo para presentes…
Às nove da noite, Rui estava a bater à porta de Ermitéria. Ela espreitou a medo… àquela hora não era prudente abrir a porta a estranhos…ainda por cima naquele bairro, tão marcado pela droga…Quando reconheceu Rui e recebeu o bolo e o dinheiro, Ermitéria riu e chorou de alegria… abraçando- o, beijando- o e obrigando- o a sentar- se numa cadeira… foi buscar uma garrafa de Porto que lhe tinham oferecido, dois copos, uma faca para partir o bolo e um prato para cada um… Rui acendeu a vela, cantou- lhe os parabéns e depois, como dois bons amigos, de mão dada…comeram uma fatia de bolo! Rui fez- lhe um brinde e Ermitéria com dificuldade articulou a única palavra que conseguia dizer às vezes…’ obrigada’!!!
Noite escura, Rui esperava o autocarro na paragem para regressar a casa. Sentia- se feliz. Sabia que no dia seguinte teria de fazer algum jejum… pois não tinha nem uma moeda no bolso…teria de aguardar a transferência do pai…
Perdera o comício, desaparecera sem dar uma justificação ao chefe, mas no seu íntimo ecoavam bem alto as palavras do avô:’ o mais importante são as pessoas… não te esqueças!’