Antonio Cícero Correia Lima é um dos escritores mais conceituados da literatura brasileira contemporânea, além de poeta também é compositor, crítico literário e filósofo. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL) e assumiu a cadeira 27, em agosto de 2017.
Seus familiares veem do Piauí, seu pai foi um dos fundadores do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, tendo sido também diretor do BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), fundado em 1952, e mais adiante, em 1960, ele assume um cargo executivo no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que então acabava de ser criado, e toda a família se transfere para Washington, D.C.; é lá que Antônio Cicero fará seus estudos secundários, por dez anos.
De volta ao Brasil, Cicero começa a cursar filosofia na PUC do Rio de Janeiro e, depois, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Em 1969, vai para Londres, onde conclui o curso de filosofia na Universidade de Londres.
Em 1976, Cicero faz pós-graduação na Georgetown University, nos Estados Unidos, onde estuda grego e latim, o que lhe permitirá ler no original clássicos como Homero, Píndaro, Horácio e Ovídio. Posteriormente, lecionará Filosofia e Lógica, em universidades do Rio de Janeiro. Antonio Cicero escreve desde jovem, mas sua obra destaca-se quando participa junto a sua irmã Marina em canções com seus poemas.
A partir desse momento, passou a escrever, além de poesias para serem lidas, letras para as melodias que sua irmã – e depois, outros parceiros – lhe enviavam. De 1991 a 1992, Antonio Cicero participou de cursos de Estética e Teoria da Arte do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ).
Mais adiante, de abril de 2007 a novembro de 2010, Cícero foi colunista do jornal Folha de S. Paulo. Em 2013, ele foi contemplado com o Prêmio ABL de Poesia oferecido pela Academia Brasileira de Letras aos autores dos melhores livros de poesia.
De toda sua variada obra, o Magnum opus – ou o trabalho de excelente criatividade e profundidade – destaca-se em “Guardar”. “Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. / Em cofre não se guarda coisa alguma. / Em cofre perde-se a coisa à vista. / Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por / admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. / Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por / ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, / isto é, estar por ela ou ser por ela. / Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro / Do que um pássaro sem voos. / Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, / por isso se declara e declama um poema: / Para guardá-lo: / Para que ele, por sua vez, / guarde o que guarda: / Guarde o que quer que guarda um poema: / Por isso o lance do poema: / Por guardar-se o que se quer guardar.”
O poema “Guardar” é, talvez, um dos mais conhecidos de Antonio Cicero; nele se destaca o gosto argumentativo e importante que o poeta-filósofo cultiva em muitos de seus textos: “Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro / do que pássaros sem voo”; esta é uma poesia para se ler com cuidado e atenção, não nos enganemos com esse tom altamente reflexivo de “Guardar”.
Seu outro poema, “Leblon”, suscita nossa curiosidade: “O menino olha para o mar: / lá no fundo ele se funde ao céu; / mas atrás há um muro e aquém do olhar / pulsam sangue e morro e mata e breu.”
Outro lapso que merece cautela: Cicero consegue também mesclar esse tom quase “suave” com os influxos da realidade imediata; aí o menino carioca, criado de frente para o mar, lembra que nem tudo se resume ao clichê da imagem maravilhosa, “atrás há um muro e aquém do olhar / pulsam sangue e morro e mata e breu”.
Passamos a “O grito”. “Estou acorrentado a este penhasco / logo eu que roubei o fogo dos céus. / Há muito tempo sei que este penhasco / não existe, como tampouco há um deus / a me punir, mas sigo acorrentado. / Aguardam-me amplos caminhos no mar / e urbes formigantes a engendrar / cruzamentos febris e inopinados. / Artur diz “claro” e recomenda um amigo / que parcela pacotes de excursões. / Abutres devoram-me as decisões / e uma ponta do fígado mas digo: / E daí? Dia desses com um só grito / eu estraçalho todos os grilhões.”
No soneto “O Grito”, o autor se sente como um mitológico Prometeu – “Estou acorrentado a este penhasco / logo eu que roubei o fogo dos céus” – perdido no cotidiano moderno das “urbes formigantes”. Descrente de tudo, ele ouve o conselho de um amigo, que lhe recomenda fazer uma excursão por uma empresa que aceita o pagamento em prestações; tudo muito contemporâneo e perpétuo.
Mais um poema que nos coloca frente ao moderno: “Blackout”. “Passo a noite a escrever. / Do lado de lá da rua / poderia alguém me ver, / daquele prédio às escuras, / em frente ao meu, e mais alto. / Que voyeur me espiaria? / De interessante, só faço / escrever. Ele veria /decerto a parte traseira / do computador; talvez, / daquela outra janela, / avistasse, de viés, / o lado esquerdo da minha / face de perfil; jamais / entretanto enxergaria / certos versos de cristal / líquido que, mal secreto / com o sal do meu suor, / e já anunciam segredos / só meus e de algum leitor / que partilhará comigo / o paraíso e o desterro, / o pranto que vem do riso, / o acerto que vem do erro. / Disso tudo, meu vizinho / nem de longe desconfia. / Mas e se ele, tendo lido / meus lábios, que pronunciam / o que na tela está escrito, / perceber-se desterrado / não só do meu paraíso: / do meu desterro, coitado? / E se ele a tudo atentar / e por inveja e recalque / me der um tiro de lá? / Melhor fechar o blackout.”
“Blackout” é outro poema que respira o ar da metrópole, nele surge o problema da privacidade para quem mora em prédios contíguos, expostos aos olhares de mil janelas. A preocupação, neste caso, é expressa por um poeta: “Que voyeur me espiaria?”, pergunta; será que algum vizinho indiscreto seria capaz de ler seus versos na tela do computador? E, finalmente, “Ícaro”: “Buscando as profundezas do céu /conheceu Ícaro as do mar / Adeus poeira olímpica / grãos da Líbia / barcos de Chipre / Adeus riquezas de Átalo / vinhos do Mássico / coroas de louro / flautas e liras / Adeus cabeça nas estrelas / adeus amigos / mulheres / efebos / adeus sol: / ouro algum permanece.” No último poema surge, mais uma vez, uma figura da mitologia grega; é “Ícaro” que salta para o céu e, inevitavelmente, dá adeus a tudo enquanto mergulha no mar. Em certo sentido, repete-se aqui a cena de “Leblon”, mais acima; naquele poema, o olhar do menino se dirige ao céu, mas a realidade o confronta com a terra e todos os intrincados problemas que ela esconde, bem às costas de quem mira o azul.
Para encerrarmos nosso texto, podemos afirmar que Antonio Cícero ostenta uma das trajetórias intelectuais e artísticas mais singulares da cultura e literatura brasileiras atuais; isso se deve à desenvoltura com que transita por diversos gêneros, aparentemente antagônicos, com igual competência e brilho: ele é um letrista de composições musicais, ele é autor de livros diversos, é crítico literário e sobretudo poeta, autor de obras que o colocam como um dos melhores “fazedores” da atualidade, onde um dos aspectos particularmente atrativo desta poesia reside no hábil entrelaçamento de feitos míticos do passado aos fatos e vivências do agora.