Há muito anos visitei uma exposição de desenhos na Faculdade de Arquitetura da USP. Nada excepcional, mas uma frase ficou gravada em mim com o ferro em brasa da profecia: “A arte moderna abriu a porta da picaretagem e engoliu a chave”.
Desde então tive a oportunidade de visitar grandes museus e consolidar preferências por um ou outro pintor ou escultor. Como estávamos em Bilbao decidi visitar o Gugenheim, cujo prédio emblemático à margem esquerda do Nervión no mínimo espanta. Sua arquitetura parece mesmo brotar de uma tradição inovadora da arte espanhola, marcadamente diversa de uma província a outra, constituindo um tecido admirável de uma grande Espanha. Como se fosse um exercício tridimensional de um Picasso.
Quanto ao acervo, bem, só mesmo pela curiosidade. Do fundo da minha condição de apedeuta, recomendaria aos artistas que o compõem, se ainda vivos, que se matriculem em escolas de Belas Artes … O prédio é monumental, ainda que não privilegie a visão do entorno, mas as obras expostas dão a ele um imenso sentido de vazio. Como se o museu estivesse aguardando seus moradores permanentes. Algumas destas obras poderiam ser utilizadas em paredes de bares, de consultórios ou num saguão de rodoviária, como um jazz pictórico em baixo volume, quando não se presta muita atenção na música.
Mas gosto não se discute. Há que respeitar os que ficam paralisados diante de alguns quadros, buscando uma compreensão em rabiscos ou manchas de tinta, tentando haurir algo de sublime, de genial. Quando acompanhados, os visitantes trocam impressões, mas seus rostos não revelam êxtase algum. Estampam o que se pode traduzir quando se olha o nada.
Mas gosto, recordemos, não se discute.
O que se pode discutir é a tentativa de a arte moderna de um Gugenheim ser perfilhada por artistas como Goya. Acho que isto se aproxima de desonestidade:
“Francisco de Goya (1746-1828) está considerado como uno de los pioneiros del arte moderno, destacando por su singular enfoque de los temas Sociales, económicos e políticos de la España de su tempo. Su innovación em la pincelada y el uso del color supuso um avance significativo em el arte y elevó aún más su estatus como pintor influyente”.
Ao lado deste texto está estampada uma cópia de “Vuelo de brujas” … cujo original, horas depois, contemplei no Museo de Artes Clássicas de Bilbao … Não dá para imaginar que o autor de “Três de Maio de 1808 em Madrid” seja identificado quase como um patrono da arte moderna. Ou mesmo o impressionista Manet, também citado. Nem um, nem outro.
Em uma das salas, enorme, retângulos pintados com cores diferentes. O nada vezes nada. O que me surpreendeu foram as pessoas a fotografar aquilo como se estivessem diante de um capolavoro. O brasileiro Volpi e suas bandeirinhas dariam um banho. Mas gosto é gosto.
Mas o belo seria apenas uma questão de gosto?
Para avançar neste tema indigesto, lanço mão de um texto assinado por João Paulo Rodrigues (https://sublimefilosofia.wordpress.com/o-belo-na-antiguidade-e-na-modernidade/). Segundo ele, Sócrates relacionou o belo com a ética e com aquilo que causa prazer, mas acabou afirmando que a tarefa de definir o belo é difícil. Platão relaciona o belo à verdade e não pode ser definido por opiniões, que pertencem ao mundo, que é imperfeito. Santo Agostinho “entende a beleza como um todo harmonioso, que possui unidade, proporção, igualdade e ordem, já que o belo é reflexo da criação divina e da perfeição de Deus, que é belo, bom e verdadeiro”. Segundo Santo Tomás de Aquino a beleza está ligada “à integralidade, à harmonia e à claridade”, enquanto o feio está “associado ao fragmentado, à desarmonia e à escuridão”.
O autor mencionado arremata com os filósofos Adorno e Horkheimer. Segundo ele, no livro “A Dialética do Esclarecimento”, estes próceres da odiosa Escola de Frankfurt afirmam que “as obras de arte se tornaram um produto comercial e, consequentemente, o próprio conceito de belo passou a ser entendido como algo ligado ao consumo e aos desejos egocêntricos. Além disso, o belo também passou a perder seu espaço central nos objetivos das obras de arte, muitas vezes dando lugar ao estranho e ao feio. A cultura artística se torna instrumentalizada, a serviço da manipulação das consciências. Esses filósofos irão chamar esse fenômeno de Indústria Cultural, que retira do indivíduo a sua capacidade crítica, consumindo a arte sem refletir sobre ela. Portanto, o belo perde a sua capacidade catártica e desinteressada para ser utilizada como um meio de consumo, sem reflexão alguma, totalmente destituída de sentido”.
Me valho das palavras acima para concluir que o museu Gugenheim em Bilbao não agradaria Sócrates, Platão, Santo Agostinho ou Santo Tomás. Porque representa de forma inequívoca a tal Indústria Cultural, num mundo idiotizado, carente de sentido.
Resta informar que a visitação do museu de Belas Artes de Bilbao – com obras de Goya, El Greco e Gauguin,- é gratuita.