Estamos na semana do VIII Dia Mundial dos Pobres e do S. Martinho, não só da castanha e vinho, mas da metade da sua capa dada ao pobre. Uma questão: a organização da sociedade fabrica ou culpabiliza os pobres? E os pobres doentes?
Já foi mais frequente a pobreza e doença nos pobres. Mas ainda há bastantes que empobreceram por adoecerem. Por vezes, alguns pobres com fragilidades, doenças e incapacidades pouco visíveis são culpabilizados indevidamente; noutros, não se pode excluir alguma culpa, mas não é fácil saber. P
ode haver injustiça nesse julgamento de os culpabilizar. S. João de Deus, quando o criticavam por se deixar explorar pelos falsos pobres que abusavam da sua bondade, negava-se a ser ele a julgar. Respondia: «Peço por amor de Deus, dão-me por amor de Deus, dou por amor de Deus, o resto é com os pobres a quem dou». Que bela chave da questão!
Mais frequente que a tendência a culpabilizar alguns pobres, é o fenómeno da «fabricação de pobres» por motivos de ganância. Fabricar parece uma expressão bárbara, e antes não existisse essa exploração, mas, infelizmente, está na moda.
Vejamos. Qual é o resultado do tráfico e do consumo das drogas e doutros consumos aditivos? Dá-se uma associação causal em triplicado: os traficantes fabricam pobres e doentes. Serão estes pobres e doentes culpados do estado em que os tornam? E não serão os traficantes de toda a cadeia do tráfico, desde a produção, distribuição e venda a pessoas concretas, os culpados da fabricação de pobres, incapacitados e agressores violentos, por serem aditos, em maior ou menor grau?
Ainda recentemente a Rede Europeia Anti Pobreza (EAPN) chamou a atenção para relação recíproca entre pobreza e saúde mental, em que uma pode ser fator da outra e vice-versa. Os que lidam com a reabilitação observam com frequências situações em que se juntam nas mesmas pessoas a doença, a pobreza, e ainda, as situações de sem abrigo, sem família, sem emprego e traumatizados e estigmatizados sociais. Numa palavra, cada vez mais fenómenos sociais de sofrimento, traumas e doença se contaminam com múltiplos fatores cruzados de causalidade. E os fatores destes fenómenos não são apenas de agentes impessoais que causam calamidades naturais.
Os efeitos das mudanças do clima, por exemplo, dependem também de fatores-pessoas que os fabricam com os seus erros e ganâncias. Nem basta que dois terços, como dizia o inquérito do Banco Europeu de Investimento (BEI), aceitem que as mudanças de clima são prioridade para mudarem alguma coisa. Quantos dos que assim pensam mudarão os seus comportamentos de consumos geradores de calamidades?
E quantos giga empresários e traficantes vão renunciar a lucros gananciosos que concorrem para mais mudança do clima e doenças aditivas e pobreza? Há pobres afetados de muitas pobrezas engrenadas em círculo vicioso de atores. As carências inatas produzem pobres, mas as deficiências fabricadas por crimes e ganâncias alheias trazem mais pobreza àqueles que perdem a saúde, a casa, os familiares e ficam traumatizados.
Ficam as questões: quantos pobres ficarão do dilúvio de Valência? Quantos pobres causados pelas novas drogas sintéticas: psicodélicas, bloom, fentanil, nitazenos, etc.? E quem é culpado de quê, dos doentes, pobres, vítimas mortais dessas drogas? Os produtores, os traficantes, os consumidores, os pais e educadores? E quem lhes fala claro que basta uma dose para ficar pobre e entrar no corredor dos doentes e condenados?
Como resolver de vez, o problema dos pobres? Pois, não se resolve de vez. Por quê? Porque os homens são frágeis e pobres de coração. Não se resolve pelas mesmas razões que não se vence a luta contra a droga (as drogas), nem o tráfico escravizante de pessoas, nem a ganância dos que se iludem e pensam que não morrem no dia seguinte. Mas só mais tarde. Ou daqueles que dizem: é só esta dose e depois paro.
No domingo passado as leituras apresentaram duas viúvas pobres e uma com um órfão. A de Sarepta ainda tentou desculpar-se de não socorrer o pobre Elias, cheio de fome em anos de uma calamidade por falta de chuva. O profeta Elias não aceitou a desculpa e ela acreditou no que ele prometeu da parte de Deus: ela e o filho, não iam morrer de fome, ainda.
O medo de morrer deu lugar à confiança na palavra de Deus e de Elias (cf. Re. 17,10-16). A viúva do templo também deixou falar o coração e o amor de Deus por ela em vez do medo de morrer de penúria. Deu tudo o que tinha e precisava para viver (Mc.12, 40-44).
Qual será a chave para não fabricar, nem culpabilizar os pobres? O amor que perdoa ao pobre e aviva a sua dignidade e a esperança para lá do tempo de penúria e de todo o tempo. Voltando a S. João de Deus, cito de novo: “e ainda respondia a outros que o criticavam de dar esmola aos pobres indignos, dizendo: «quando me pedem por amor de Deus tenho que dar ainda que seja a minha vida.» (Pleyto, testemunhas 4 /14 e 15/2)”.
Funchal, Dia Mundial do Pobre, 17.11.2024