As imagens do congestionamento em Beirute, de pessoas em fuga da cidade por conta dos bombardeios de Israel, são um testemunho acachapante da estupidez das guerras. Repaginado, atual, no tempo dos mísseis, que custam os tubos, mas possibilitam a guerra remota, de ampla destruição antes da invasão por terra para domínio absoluto.
Golias já não existe. E Davi aposentou o estilingue. Para que o lado mais fraco vença, somente no estilo vietnamita, na estratégia de desgaste e do heroísmo de quem nada mais tem a perder.
O bombardeio de Beirute, cidade que afortunadamente conheci em 2015, foi o segundo evento que me entristeceu em relação ao Líbano.
O primeiro foi a explosão no porto da mesma cidade, muito perto do mosteiro franciscano em que me hospedei. Deve ter sido fortemente atingido. Em 2020, naquela que seria uma das maiores explosões não nucleares já vistas, bairros inteiros foram afetados, matando mais de duzentas pessoas e ferindo mais de seis mil. O local em que peguei uma van para visitar Biblos, num dia, e Baalbek, no outro, foi aos ares. E o que dizer do cais em que entrevistei o comandante da corveta Barroso, então chefiando a missão da Unifil na costa libanesa?
Quando lá estive, muitos prédios na chamada Green Line – avenida que dividira os opostos na guerra civil libanesa, entre 1975 e 1990,- ainda estampavam furos de balas e cicatrizes de bombas.
Mais de um milhão de refugiados sírios viviam na terra de Khalil Gibran, nascido em Bsharri, vilarejo alcandorado no Monte Líbano. Na juventude ganhei um livro de Gibran de um amigo de meu pai, que a título de dedicatória apôs versos de Raul Campoamor: «Y es que en el mundo traidor / nada hay verdad ni mentira: / todo es según el color / del cristal con que se mira». À época, rebelde pela idade e atoleimado pela vaidade, admirei. Graças a Deus rejeitei o relativismo, este sim um grande traidor.
Uma vez no Líbano, meu plano era visitar Damasco, a apenas cem quilômetros de Beirute. Mergulhada numa guerra fratricida, a Síria não era pródiga na admissão de estrangeiros, mesmo na minha condição de jornalista. Ficou para o futuro. Espero.
Qual a rota de fuga para os moradores de Beirute? Tiro, Sidon e cercanias ao sul, na direção de Israel? Para o norte, na direção da Síria, onde concentra-se o Hezbollah? O aeroporto é a porta mais rápida, mas imagine-se o tumulto. E uma vez fora do Líbano, onde e como sustentar-se? Instalar-se num acampamento da ONU de forma miserável e desesperançada?
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Kurosawa é celebrado por todos os cinéfilos, ainda que sua obra transborde a cultura japonesa, com destaque para os samurais ou figuras shakespeareanas ou dostoievskianas transpostas para o país do sol nascente.
“Rapsódia em agosto” não figura entre os dez melhores filmes de Kurosawa, liderados talvez por “Ran”, uma adaptação do Rei Lear. Particularmente seu filme que mais aprecio é “Dersu Uzala”, uma jóia cinematográfica que fala de amizade, crenças, natureza e lealdade. Entretanto, Rapsódia, seu penúltimo filme, aborda um tema indigesto na relação Japão-EUA.
Netos, que vestem camisetas com estampas norte-americanas, passam alguns dias de férias com a avó, cujo marido foi fulminado pela “Fat Man” em Nagasaki, em nove de agosto de 1945. Três dias antes “Little Boy” devastara Hiroshima.
Neste curto período com a avó os jovens respiram valores da geração que criou seus pais e sofreu os horrores da guerra. O texto menciona que esquecemos tudo, até mesmo os momentos mais terríveis, mas é inevitável questionar o ataque nuclear. É comum ouvir que os ataques foram necessários para encerrar a guerra e estancar o morticínio, porquanto o fanatismo japonês impediria a rendição.
O tema é no mínimo controverso. E causa estranheza que o Julgamento de Tóquio, gêmeo do Julgamento de Nürenberg, seja tão pouco conhecido. Afinal de contas, o lançamento das bombas atômicas, dizimando civis, constituiria um crime de guerra? Terá sido por isto que este julgamento – com saldo de sete enforcados e dezesseis condenados à prisão perpétua,- foi condenado ao esquecimento?
A avó em Rapsódia em Agosto diz que “as pessoas farão qualquer coisa para ganhar a guerra. Mais cedo ou mais tarde isto vai destruir-nos”. Em sua feitura, com elenco barato, de fato trata-se de obra modesta, mas seu significado é maiúsculo, ao abordar o tema sensível das relações pós-guerra, confrontando gerações e suas visões de mundo. Coloca frente a frente a espiritualidade dos antigos e a indiferença, convivendo numa cultura ameaçada.
E agora, quando o mundo vive a tensão de um deslize nuclear na guerra da Ucrânia, evoco o que escutei num vídeo de Bruna Torlay. Segundo ela, Platão afirmara que, espiritualmente ordenados, politicamente justos seremos. Espiritualmente desordenados, a injustiça correrá solta.
Qual a chance de fazermos a política funcionar como se espera se Deus estiver fora de cena?