Meio ano atrás nossa cidade sofreu a maior enchente de sua história. Bairros nos quais a água respeitosamente não invadia ficaram metro e meio submersos. A rua que leva da nossa casa ao centro ficou em alguns trechos debaixo de três a quatro metros de água. O estado sofreu e mesmo sua capital padeceu momentos inimagináveis. Choveu muito, choveu demais por muitos dias. Com a cumplicidade de rios assoreados e de sistemas de proteção que falharam, as águas infligiram a milhares de famílias a perda de seus bens e mesmo de suas casas.
Passados seis meses ainda é possível ver aqui e acolá as marcas da inundação, casas e lojas abandonadas, porquanto nada foi feito pelo poder maior e ninguém de sã consciência se permite imaginar que o evento não se repetirá. O Brasil é uma república federativa apenas no nome. Na realidade o poder central concentra a arrecadação, custeia a máquina paquidérmica e distribui o que sobra em favores, conchavos, maracutaias e por vezes até com destinação correta.
No início da noite em que escrevo assistimos um espetáculo de duas escolas de dança no centro de cultura. Nossa caçula participou e seu grupo não fez feio no palco. Indumentária simples, sem fantasias, o que nos agradou muito. A coreografia falou mais alto.
Deixáramos o carro na praça principal. Iluminada, como em todos os dezembros. Desta feita, porém, um fato retrata a alma deste pequeno município. A decoração natalina da prefeitura perdeu-se na enchente. O depósito em que era armazenada ficou debaixo de lama e detritos. De onde saíram bolas, adereços e luzes? Cada escola do município decorou uma árvore na praça e o espírito de Natal mais uma vez brilha no centro da pequena cidade, da vila, como afetuosamente a denomino.
Voltando pra casa passamos pela rua que mencionei acima, aquela que desapareceu sob águas turvas e incertas. Tudo em ordem. A vida voltou ao normal. Ou quase. Um capítulo a mais na história de destruição e superação que anda de braços dados com a humanidade. Feliz a hora em que decidimos morar nesta vila. Depois de décadas no tumulto de São Paulo.
A marca da vila é o cruzar com conhecidos pelas ruas, trocar cumprimentos ou comentários sobre o tempo, o futebol e a vida. O que nos faz agir com mais responsabilidade, afinal não somos incógnitos, como nas metrópoles. Ainda que de forma quase invisível sobrevive a coesão, este bálsamo que falta ao país, que anda, desanda e tresanda sem rumo, sem convicções, sem planos. Nossa orquestra não ensaia. Seguimos sob o desafino que Felini tão bem caricaturou.
Lanço mão das ideias de Thomas Sowell, que acusa a intelligentsia de operar na destruição dos sentimentos de patriotismo, religião e família:
“Chamar esses padrões de “justiça social” permite que os intelectuais se dediquem à promoção de reclamações intermináveis, denunciando os modos particulares pelos quais a sociedade fracassa em alcançar os critérios arbitrários estabelecidos por eles, juntamente de um desfile de outros grupos que se colocam como vítimas, exemplificando na fórmula “raça, classe e gênero” que temos hoje; e o mesmo tipo de pensamento por trás dessa fórmula particular é usado quando se retratam as crianças como vítimas de seus pais, e imigrantes ilegais como vítimas de uma sociedade xenofóbica e indiferente. Ou seja, muitos membros da intelligentsia se dedicam à produção e à distribuição de agravos e de ressentimentos, vasculhando a história quando não conseguem um número suficiente de agravos contemporâneos que se encaixem em sua visão”.
Nossa intelligentsia, medíocre e hipócrita, está diluída entre inúmeros ramos. Próceres da academia, artistas televisivos, sociólogos, músicos e jornalistas de esquerda e toda sorte de seres que se outorgam o título de pensadores. Empunham com estrépito o guarda-chuva da justiça social, atribuindo a todos os demais a pecha de reacionários, desalmados ou fascistas.
Basta proclamar “justiça social” para condenar os opostos ao ostracismo, à súcia dos que devem ser varridos da visão. Assim, o que mais se ouve é que o país está dividido.
Como se fôssemos russos e tchetchenos.
Não há coesão e sem ela não se faz país algum.