José Maria Eça de Queiroz, um dos mais brilhantes escritores portugueses do século XIX.
Um artigo do Eça de Queiroz contra o Pinheiro Chagas, reunido na colectânea «Notas Contemporâneas», descreve a situação em que me encontro. É meia-noite. Tive um dia intenso, de manhã cedo até agora, mas o jornal está à espera deste artigo para a sua página de religião. Que notícia se destaca esta semana?
Notre-Dame restaurada inaugurou-se com a presença de muitos chefes de Estado. O Papa visitou a Córsega. Estamos a viver o arranque da nova guerra mundial, primeiro na Ucrânia, depois em Gaza, agora também na Síria, em guerra civil e invadida por exércitos estrangeiros. Dentro de pouco, no próprio dia de Natal, começa o Jubileu.
A esta hora da noite, é impossível escolher o tema. Só me vem à cabeça a diatribe do Eça, no século XIX, criticando um artigo do Pinheiro Chagas. Como é que o Chagas escreveu uma coisa tão horrível?!
«Riamos, meu caro Chagas, riamos aqui a este canto, abraçados um no outro! Rebolemo-nos! (…)
Eu conheço a situação: é medonha. Na véspera tem-se dito ao director do jornal, apertando-lhe ferventemente a mão, e com a voz a tremer:
— Palavra de honra, menino. Pela minha vida, que tens lá o artigo, além de amanhã, às nove horas. Eu sou incapaz de te comprometer! Juro-to, pela alma de meus filhos… Boa noite. Lá o tens!
Depois, naturalmente, como você sabe, não se pensa mais no artigo. Mas, cruel destino! no dia aprazado, lá toca a campainha, lá chega, fatal, implacável, irrevogável — o moço da tipografia!
É horroroso. Sobretudo quando ele usa botas que rangem! Fica à espera, passeando no pátio ou no corredor: e aquele lento gemer de solas tristes, cadenciado e acusador, alucina!
E cá no nosso gabinete, que pavorosa luta! As cinco tiras de papel ali estão sobre a mesa, lívidas, irónicas, vazias: e é necessário enchê-las todas, de alto a baixo, com coisas extraídas do nosso interior.
É trágico. A parte da carcaça humana a que se recorre primeiro é naturalmente ao crânio, depósito de ideias, impressões, adjectivos e teorias; aperta-se o crânio nas mãos frementes; sacode-se o crânio como uma velha algibeira: — nada sai do crânio. E as botas ao longe, a ranger!
Maldição! Recorre-se então ao peito, asilo dos afectos, dos sentimentos generosos. Talvez de lá saia um canto, um grito, uma apóstrofe. Arranha-se convulsivamente o peito; bate-se desesperadamente no peito como numa porta fechada: — o peito fica mudo como o crânio. E as botas ao longe a ranger!
Inferno! E então os crentes rezam à Virgem Maria; os ateus invocam a morte, a doce aniquilação da matéria; os mais violentos pensam em atrair o moço da tipografia com palavras doces, cortá-lo aos pedaços com uma navalha de barba, esconder os fragmentos na sarjeta doméstica… E as botas, lá no fundo, ironicamente, rangem!
Ah, caro Chagas, é daí que vêm as cãs precoces. Sabe você o que eu fiz numa destas agonias, sentindo o moço da tipografia a tossir na escada, e não podendo arrancar uma só ideia útil do crânio, do peito, ou do ventre? Agarrei ferozmente da pena e dei, meio louco, uma tunda desesperada no Bei de Tunes…
No Bei de Tunes? Sim, meu caro Chagas, nesse venerável Chefe de Estado, que eu nunca vira, que nunca me fizera mal algum, e que creio mesmo a esse tempo tinha morrido. Não me importei. Em Tunes há sempre um Bei: arrasei-o.
Por isso eu compreendo bem [o que você escreveu] (…). Talvez eu, no seu caso, tivesse feito pior…».
Pelos vistos, não é de agora, já no século XIX a imprensa vivia dramas terríveis. Ontem, como hoje, a solução é rir das urgências impossíveis, atitude mais civilizada do que dar uma tunda desesperada num qualquer Bei de Tunes.
Nota: Bei era um título nobiliárquico otomano e árabe. O Bei de Tunes era o governante da actual Tunísia.