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Conto doutro Natal: uma surpresa de mãe

  • Dezembro 20, 2024
  • Religião
  • Padre Aires Gameiro

 

Fui uma surpresa doutro Natal. Numa das Missas do Parto (Madeira) estava ainda deitado a ouvir as leituras pela rádio. E revivi uma surpresa. Ouvia a história da mãe de Sansão e a história de Zacarias e Isabel. As mães tiveram uma surpresa e Zacarias nem queria acreditar pela idade de ambos. Estas leituras de surpresas de Deus, recordaram a surpresa da minha mãe. Uma sua amiga à minha frente perguntou: «quem é este rapazito?». «Este é o Aires, o meu mais novo, vai para a escola este ano, já não o esperava». Terá tido uma surpresa aos seis meses desta gravidez; sentiu nela os sinais do nené, o mais novo de sete.

A Bíblia e os psicólogos abundam em sua observações sobre o mais novo e o mais novo de sete. Os pais, mães e vizinhos dão os seus palpites sobre o bebé logo ao nascer. De João Batista diziam: «todos os que ouviam gravavam estas coisas em seu coração, dizendo: o que irá ser este menino? De facto, a mão do Senhor estava com ele» (Lc.1,66). O Senhor já estava com ele e sua mãe rezaria e pensava a mesma coisa logo a partir dos seis meses antes deste nascimento. E o salmo diz que Deus conhece os bebés desde o seio materno. Surpresas sucederam, depois, ao Aires e nunca mais acabaram. A surpresa de se lembrar de quando ainda dormia no berço, talvez, aos 3-4 anos, e que a mãe o ia deitar e rezava com ele uma pequena oração que mais tarde recordava e rezava: «com Deus me deito, com Deus me levanto, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo».

Não havia psicólogos para dizerem como era o seu feitio. Na verdade foi do primeiro grupo de psicólogos formado em Portugal. Mas, não faltaram pessoas para dizerem como ele ia sendo. Os seus irmãos e irmãs, que sabiam as primeiras letras, começaram a ver que o pequeno não os largava a pedir para lhe ensinarem o que eles sabiam. Não era muito, mas para a curiosidade de saber do garoto já ajudava a ganhar alguns desafios de saber mais no primeiro ano de escola com o professor Guerra. E eles lá iam ajudando, mas, na segunda classe, já começava a saber mais que os irmãos. Não era só ler e escrever, agora queria saber tudo o que eles faziam e a mãe, com quem ia à igreja, aproveitou para lhe ensinar a doutrina para fazer a primeira comunhão e rezar o terço em família. Viriam surpresas.

O Aires aprendeu, também, a apanhar a azeitona, cavar, semear, sachar, regar a horta, ceifar erva, milho e trigo, tirar a espiga do milho, descamisar, debulhar na eira, limpar, ensacar. Gostava mais de ajudar na vindima para comer uvas; colhia e comia figos, pêssegos, peras, maçãs. E ser pequeno não o impedia de ouvir: “Aires, hoje vamos roçar mato para os currais, amanhã vamos à charneca (pinhal) buscar madeiros para ter cavacas no inverno, caruma e lenha para a lareira e para cozer a broa no forno, cozinhar a sopa, acender o alambique”. E lá se punha a burra ao carro para o transporte dessas cargas. Na ida, ia-se em cima do carro, agarrados aos fueiros. Se era para cortar pinheiros levava-se o machado e a serra.

Era raro que o pai e o tio fossem preparados para serrar os toros e fazer tábuas, barrotes e ripas. Os dois eram serradores braçais. Já havia por perto serrações a vapor. Pelos seis, sete anos, nos tempos sem escola, com a irmã levava o pequeno rebanho de oito ovelhas a pastar no outeiro; e, se era inverno, com agasalho e guarda-chuva de doze varetas. No inverno, no barracão, era o pai, um faz-tudo, que ensinava o que o Aires gostava de aprender: fazer tamancos de sola de madeira, remendar botas e sapatos, coser meias solas, coser gáspeas e tombas, fazer guita, colheres de pau, baldes de madeira, carros de mão, cabrestos e albardas, rodas para carrinhos de brincar. A mãe fiava, urdia, tecia, tingia.

O Aires gostava de ir a todo lado por caminhos e carreiros diferentes. Quando a escola ficou de paredes inseguras as aulas eram noutro edifício mais longe, e ele ia e vinha por percursos diferentes e mais distantes para ter surpresas. Para a missa e catequese percorria, à vez, outros caminhos, e ia à igreja e festas das freguesias vizinhas. Gostou de ir à vila de comboio para fazer exame da 4ª classe; e no ano a seguir, num grupo de ceifeiros, foi, com um irmão, a uma herdade do Vimieiro passar o mês de junho a ceifar trigo de sol a sol.

Frequentava as duas feiras das terras vizinhas com a mãe e o pai para comprar botas ou venderem alguma criação; e ele, bolota que apanhava debaixo dos carvalhos. Nas festas de arraial e procissão, além da missa, o farnel comido sob as árvores do adro, em convívios alegres de familiares e vizinhos, a ouvir os foguetes e a filarmónica, eram um gozo. A festa da Páscoa de aleluia era outra de que gostava muito pelas amêndoas, os folares e a visita pascal. A festa do Natal naqueles tempos era pouco caraterística, quase desapercebida.

Missa, sim, mas não do galo (só o nome) nem presépios. Era Natal, mas limitava-se a uma imagem de Nossa Senhora de roca com o menino Jesus nos braços sobre uma mesa na capela-mor. Quando, lhe perguntaram se queria ir para missionário para um escola onde já havia outros rapazes da sua terra gostou de ir. E, ainda hoje, se questiona como nem a mãe nem o pai tiveram qualquer dificuldade em o deixarem ir aos treze anos. E nem a ele lhe custou nada. Antes, pelo contrário, parece que o bichinho da curiosidade, aventura e surpresas facilitaram esta separação. Nos anos a seguir viveu natais de muitas surpresas lá para os lados de Sintra.

Funchal, Natal de Jesus Menino, 2024

 

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