Me dirigia à Santa Casa de Misericórdia, para um procedimento, uma semana antes da data em que celebramos o nascimento de nosso Salvador.
Gesticulando diante de uma parada de ônibus urbanos, meio corpo na pista de rodagem, calça jeans e camiseta que um dia foi branca, uma pequena sacola às costas, equilibrando-se no meio-fio, um pedinte discursava para três senhoras sentadas. Enquanto passava escutei suas palavras finais. Desejou à sua insólita platéia um Feliz Natal. E uma boa viagem …
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Como num salto entre culturas, sigo na leitura de “Crianças de Grozni”, da jornalista norueguesa Åsne Seierstad. Como correspondente de guerra, enfrentou situações de extremo perigo para retratar um pouco a realidade da Tchetchênia depois de duas guerras separatistas, abafadas com a mão pesada da Rússia.
Åsne conversou com vítimas da deportação de tchetchenos determinada pelo monstruoso Stalin, supervisionada pelo implacável psicopata Lavrentia Beria, chefe da NKVD. É difícil acreditar que os homens possam ser tão maus.
Ela entrevistou o presidente tchetcheno, Ramzan Kadyrov, líder muçulmano, filho do ex-presidente Akhmad Kadyrov, líder nacionalista, morto em um atentado num desfile militar num estádio em Grozni. Explosivos colocados sob a cadeira em que sentara o eliminaram.
Ramzan tem uma fisionomia estranha. Boxeador, corpulento, acusado de crimes de tortura, assumiu muito jovem o papel de mandatário máximo. Segundo a jornalista, seu russo é precário. Autoidolatrado, jura fidelidade à Rússia e bajula Putin.
Críticas à sua pessoa à parte, destaco um trecho da entrevista: “Eu mesmo sei que a morte vai chegar, não tenho medo. Deus existe, e nós escolhemos o bom caminho. Afinal, o que a Europa tem de tão bom? Lá os homens e as mulheres são iguais. O que há de bom nisso? A natalidade é baixa, as pessoas não se casam. A sociedade foi feita para destruir os jovens, eles não querem ir para o exército, é uma desgraça para o país, uma vergonha, haverá um colapso total. Nasce um menino, ele nem sabe quem é o pai, a que família pertence, que tipo de gente. Assim é a Europa para mim. Lá não há patriotismo. Por isso valorizamos o seguinte: nossas tradições, nossos costumes”.
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Num fórum econômico recente, transcorrido na Rússia, Putin admoestou um empresário alemão que, ao utilizar o microfone, o fez em inglês. Putin – que residiu na Alemanha e é fluente no idioma de Schiller e Hölderlin,- rememorou uma festa de aniversário de Gerard Schröder, em Hanover, da qual participara. Todos falavam em inglês. Até mesmo o coral de crianças entoava canções em inglês. Uma vergonha!, concluiu Putin. Segundo ele, trata-se de uma questão de soberania. De identidade, de pertencimento.
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Tenho me envolvido nas comemorações do cinquentenário de formatura da minha turma no Colégio Militar de Porto Alegre. Falta menos de um ano. No caminho teremos encontros e um portal, com fotos, vídeos e textos. Por conta disto voltei às arcadas da mais que centenária escola para pesquisar imagens no modesto acervo, notadamente de desfiles e competições esportivas.
Um dos registros foi o de uma missa a céu aberto, no pátio da escola. Se não me equivoco, nossa turma também assistiu uma celebração de graças na Igreja de Santa Teresinha, com traje de gala. São indicadores do protagonismo católico naquela época.
Revi registros de antigos comandantes e professores, já falecidos em sua grande maioria. Lembro do rigor da caserna, particularmente da postura do coronel Túlio Chagas Nogueira, que comandou o CMPA, tornar-se-ia general e integraria o Estado-Maior do Exército. Outros tempos. Outros homens. Optei pela vida civil, mas é inegável que alguns traços da formação ficaram indeléveis.
Passado quase meio século fico a contabilizar as mudanças. No campo religioso as poucas denominações multiplicaram-se na linha do cisma do cisma do cisma do cisma …. dos cismas primevos. O gnosticismo tomou conta de muitas mentes, como se a fé dependesse de um falso misticismo, ou de conhecimento, e o relativismo fez o resto.
Quanto aos militares, a admiração de que eram merecedores tem esboroado. Caíram no conto do vigário dos ataques à ditadura, sem reagir. Escutaram e não falaram. Como se nunca houvesse treinamentos de guerrilha em Cuba e radicalização dos movimentos de esquerda. Como quem cala, consente, a narrativa da esquerda correu sozinha a maratona.
A pregação de democracia e justiça social, palavras dissolvidas na tóxica feijoada gramsciana, foi conquistando mentes e assumindo hegemonia na imprensa, na academia, nas artes e mesmo no judiciário.
Quem não deseja justiça social? Ora, à exceção dos monstros, todos nós. Mas o que se viu pela mão da esquerda está tão longe disto quanto o clientelismo está do verdadeiro progresso. Roubalheira, demagogia, desestímulo ao trabalho e a consequente dependência do Leviatã de milhões de almas deram o tom e nos trouxeram até aqui, à beira do abismo.
Democracia? Porque votamos? Democracia pífia: o povo não tem poder algum e apenas padece sob muitos tiranetes e canalhas que juram defendê-la. Vivemos no salve-se-quem-puder. E Deus por todos.
Aquele cidadão na parada de ônibus, a desejar Feliz Natal em sua humilde condição, misto de loucura e lucidez, é um pouco do que nos resta de bonomia e cordialidade, um dia cantadas em verso e prosa. Um retrato de nossa identidade perdida.
A data, entretanto, é de esperança. Para quem põe seu olhar na eternidade, aproxima-se o mais extraordinário evento da história, quando Maria entrega seu Filho ao mundo.
Feliz Natal!