Machado de Assis, 1839 – 1908, é o escritor brasileiro amplamente reconhecido por críticos e estudiosos nacionais e mundiais; ele é considerado o maior expoente da literatura brasileira.
Sua produção literária abrange praticamente todos os gêneros, incluindo poesia, romance, crônica, dramaturgia, conto, folhetim, jornalismo e crítica literária. O autor testemunhou a Abolição da Escravatura e a transição política do Brasil, com a proclamação da República em substituição ao Império, além de diversos eventos significativos no final do século XIX e início do século XX, e sendo um notável comentador e relator dos acontecimentos político-sociais de sua época.
Já tratamos de textos variados produzidos por Machado de Assis, espacialmente, contos, mas neste final de ano, decidimos acessar um Apólogo intitulado “A Agulha e a linha”. Apólogo é um texto literário alegórico – figurado – e moralista, com seres inanimados que falam ou assumem posturas que são inerentes aos seres humanos, como a nobreza de caráter, por exemplo. Trata-se de um gênero literário com uma narrativa contendo eventos similares aos da vida real, os quais representam coisas ou ideias. O apólogo é uma alegoria moral com fins didáticos: esse texto apresenta um teor moralizante e a presença de objetos inanimados com características humanas.
Nosso autor teve a ideia de relatar os acontecimentos desta história como se fossem objetos do cotidiano.
“Um apólogo” / Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha: – Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo? – Deixe-me, senhora. – Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça. – Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros. – Mas você é orgulhosa. – Decerto que sou. – Mas por quê? – É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu? – Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu? – Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados… – Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando… – Também os batedores vão adiante do imperador. – Você é imperador? – Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto… / Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana – para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha: – Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima… / A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile. Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe: / – Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá. / Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: / – Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. / Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: / – Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!”
A discussão que acontece entre a agulha e a linha no conto “Um apólogo” coloca em destaque a situação de alguém que abre caminho para outras pessoas, sem usufruir das vantagens advindas de seu trabalho; no caso do conto, a agulha abre caminho para a linha entrar no tecido do vestido de cetim, mas quem vai ao baile com a baronesa é a linha que está costurando o vestido.
Em sentido figurado, pode-se dizer que isso ainda acontece em vários momentos na sociedade, e que por outro lado, o alfinete de “Um apólogo” afirma que não abre caminho para ninguém, e que por onde o espetam, ele fica. Há pessoas que não acreditam no potencial das outras, ou preferem não se desgastar e escolhem não ajudar ninguém quando poderiam fazê-lo. Já aquele “professor de melancolia” do conto, que afirma ter servido de agulha para muita “linha ordinária”, ele admite ser usado por outras pessoas.
Essa situação também acontece hoje em dia, quando alguém se deixa levar por boatos e acaba espalhando notícias sem verificar a autenticidade dos acontecimentos. Nosso conto fala de arrogância, de se aproveitar do outro, de se deixar levar por situações que não são o que parecem ser.
Concluindo esta obra de Machado de Assis, um pequeno apólogo com dois objetos, uma agulha e um novelo de linha, ganham importância de gente; elas conversam, refletem, discutem, argumentam como se fossem pessoas. Como nós!