Finda o ano. Muito cedo alguns chatões, com exagerada animação, transgredindo as regras tácitas da vida em comunidade, romperam o dia com fogos e música nas alturas. Levanto e vejo pela janela o mar, mais agitado que nos últimos dias. Sol com nuvens, mas há alegria no ar.
Queiramos, ou não, este clima é típico das viradas e me agrada, com seus inevitáveis votos e retrospectivas. Olha-se pelo retrovisor e então comemora-se com fartas razões. O ano foi ruim? Ótimo, ficará para trás. Foi bom? Que nada mude! E ninguém reclamará se ainda melhorar.
Esta coisa de olhar para trás me fez lembrar o almoço de Natal. Recebemos o mais velho de meus sobrinhos e sua família. O vemos pouco e até por isto temos assunto para muitas horas. Falávamos sobre nossa insignificância, questionando a estúpida idéia que temos, de vez em quando, de que somos melhores que os outros. Volta e meia sou acometido pela recordação de um texto do Padre Vieira em que discorre sobre as almas no Céu. Privilégios cessados, diferenças mitigadas, talvez padeçam os que se consideram a última bolacha do pacote.
Pois este olhar para trás é metáfora de um dos temas que meu sobrinho propôs. Interessado pelas coisas do espaço, lembrou de um pedido de Carl Sagan à NASA. A sonda espacial Voyager 1 estava prestes a deixar o sistema solar e Sagan pediu que a sonda batesse uma última foto da Terra. A solicitação gerou polêmica: danos eram possíveis e qualquer dispêndio extra de energia poderia gerar futuros arrependimentos.
Por fim as câmaras da sonda foram viradas para a Terra e algumas fotos foram geradas. A seis bilhões de quilômetros de distância. Uma delas ficou conhecida como “Pálido Ponto Azul”. Ao apresentá-la numa palestra pública na Universidade Cornell, em 1994, Sagan foi extremamente feliz em sua reflexão:
“Olhem de novo para o ponto. É ali. É a nossa casa. Somos nós. Nesse ponto, todos aqueles que amamos, que conhecemos, de quem já ouvimos falar, todos os seres humanos que já existiram, vivem ou viveram as suas vidas. Toda a nossa mistura de alegria e sofrimento, todas as inúmeras religiões, ideologias e doutrinas econômicas, todos os caçadores e saqueadores, heróis e covardes, criadores e destruidores de civilizações, reis e camponeses, jovens casais apaixonados, pais e mães, todas as crianças, todos os inventores e exploradores, professores de moral, políticos corruptos, “superastros”, “líderes supremos”, todos os santos e pecadores da história de nossa espécie, ali — num grão de poeira suspenso num raio de sol. A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pensem nos rios de sangue derramados por todos os generais e imperadores para que, na glória do triunfo, pudessem ser os senhores momentâneos de uma fração desse ponto. Pensem nas crueldades infinitas cometidas pelos habitantes de um canto desse pixel contra os habitantes mal distinguíveis de algum outro canto, em seus frequentes conflitos, em sua ânsia de recíproca destruição, em seus ódios ardentes. Nossas atitudes, nossa pretensa importância, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no Universo, tudo é posto em dúvida por esse ponto de luz pálida. O nosso planeta é um pontinho solitário na grande escuridão cósmica circundante. Em nossa obscuridade, em meio a toda essa imensidão, não há nenhum indício de que, de algum outro mundo, virá socorro que nos salve de nós mesmos”.
Encerrasse desta forma, Sagan já teria a paternidade de um texto impactante, mas foi além:
“A Terra é, até agora, o único mundo conhecido que abriga a vida. Não há nenhum outro lugar, ao menos em um futuro próximo, para onde nossa espécie possa migrar. Visitar, sim. Goste-se ou não, no momento a Terra é o nosso posto. Tem-se dito que a astronomia é uma experiência que forma o caráter e ensina a humildade. Talvez não exista melhor comprovação da loucura das vaidades humanas do que essa distante imagem de nosso mundo minúsculo. Para mim, ela sublinha a responsabilidade de nos relacionarmos mais bondosamente uns com os outros e de preservarmos e amarmos o pálido ponto azul, o único lar que conhecemos”.
A Voyager 1 foi o primeiro objeto feito pelo homem a sair do sistema solar e segue navegando pelo espaço infinito, agora com as câmeras desligadas, enquanto a humanidade navega no infinito do tempo a desconhecer a exortação de Sagan.
Feliz 2025!