Bloco cirúrgico preparado, equipe a postos, instrumentação disposta e iluminação conveniente, o médico aproxima-se do paciente:
– Calma, Jorge. É só um cortezinho.
– Doutor, meu nome não é Jorge …
– Eu sei. Eu sou o Jorge.
Lembro deste chiste, que escutei de um dileto amigo, ele próprio médico, sempre que suspeito da nervosa incompetência de nomeados em funções públicas ou quaisquer indivíduos que se abalançam a comandar em terreno que absolutamente desconhecem, como é o caso do nosso ministro da fazenda. Mais perdidos que cachorro que caiu da mudança. Com bisturis à mão, transmudados em canetas, fazendo estragos.
Nem sempre os malfeitos decorrem da incompetência. Em muitos casos atendem os apelos do mal, disfarçados em livros, palestras, entrevistas ou produções cinematográficas. O filme Conclave, candidato a uma das mais famosas premiações do cinema, do início ao fim procura retratar a Igreja e seu colégio cardinalício como um covil de intrigas, onde imperam a discórdia e as traições.
Segundo a produção, a escolha de um Papa não passa de um jogo ideológico, confrontando conservadores, pintados como defensores das trevas medievais, e os progressistas, comprometidos com a tolerância, a diversidade e o novo. Tradição? Qual nada, o que conta é o futuro … O Espírito Santo? Passa longe do filme, cujo patético final tem todas as digitais da agenda podre.
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Na década de oitenta, no final das tardes de domingo, muitas missas assisti na Catedral da Sé, celebradas pelo Arcebispo Arns, cuja voz cardinalícia defendia os deserdados da sorte, os vulneráveis numa sociedade certamente injusta. Me parecia um farol de esperança num tempo de difícil transição entre o período militar e a sonhada democracia.
Décadas se passaram e o sonho esboroou. Políticos que haviam sido afastados retornaram ao palco, novos partidos políticos foram criados e sucessivas eleições foram o combustível formal do barco que insiste em naufragar. Nosso porão tem a água de injustiças acumuladas, o veneno da criminalidade crescente e a lama da demagogia. A esquerda promete drenar o fétido porão enquanto faz mais e mais furos no casco.
Qual a ligação entre um bom homem, como o Cardeal Arns, e o desastre da pregação socialista e comunista no Brasil? No afã de recuperar a classe operária, apoiou as comunidades eclesiais de base e inocentemente deu ênfase ao entorno político, notoriamente socialista, permeado por comunistas. A coisa passou do fio e o dai a César o que é de César caiu no Brasil. Oportunistas de todos os quadrantes tiraram proveito.
Estou a ler a autobiografia do Cardeal Arns, com passagens tocantes, sobretudo sua descoberta vocacional nos anos que precederam o seminário. Seu pai, líder comunitário, era homem econômico com as palavras. Relutou em permitir ao filho o ingresso na vida religiosa. Dois de seus filhos já estavam encaminhados na vida sacerdotal, mas acabou acedendo: “Filho, você pode ir. Estude e se esforce. Mas nunca me dê o desgosto de não se considerar ou comportar como filho de colono. Papai é colono, e você, mesmo depois de estudar muito, sempre será filho de colono e de seu povo”.
Em que medida a bela exortação paterna pela autenticidade, conclamando a humildade e o respeito pelas raízes contribuiu para a ênfase social a meu ver exagerada na atuação do Cardeal?
O título do livro, “Da Esperança à Utopia”, não me parece nada católico. Se utopia é uma fantasia, algo que não existe em lugar algum, associá-la à palavra esperança constitui-se numa infeliz escolha. Emblemática foi a escolha do autor do texto da orelha do livro, Leonardo Boff, segundo o qual Dom Paulo abordava “questões espinhosas e a centralidade do Evangelho como fonte inspiradora de esperança e utopia”.
Quando faleceu, João Pedro Stédile, coordenador nacional do Movimento Sem Terra, afirmou, segundo El País (https://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/13/politica/1481637238_864951.html), que sem ele os movimentos sociais careceriam de guia: “A maioria dos movimentos que hoje existe, MST, MAB [Movimento dos Atingidos por Barragens], Movimento dos Pequenos Agricultores, Comissão Pastoral da Terra, Cimi [Conselho Indigenista Missionário], nascemos orientados por vossa sabedoria, que pregava: em tempos de ditadura, deus só ajuda quem se organiza. Então fomos nos organizar. Queremos agradecer de coração por tudo que o senhor fez nesses 95 anos, sobretudo porque o senhor ajudou a acabar com a ditadura militar no Brasil”.
Não deploro o Cardeal Arns. Homem bom, pastor dedicado, talvez tenha apenas negligenciado as manobras das ovelhas negras, que sempre sonharam com outra ditadura enquanto faziam o sinal da Cruz.